quarta-feira, 9 de março de 2011

O papel do conflito, da coerção e do consenso na estruturação da sociedade


O artigo que neste momento se apresenta tem a pretensão de discorrer acerca de fenômenos que sempre estiveram presentes na sociedade: o crime e as reações que ele suscita. Para tanto, parte-se da análise de três teorias acerca da constituição do ato criminoso, a fim de conceder o embasamento necessário ao estudo dos seguintes fatos sociais: Implementação de regras e significados morais numa dada ordem social, papel desempenhado pelos rituais punitivos, modos pelos quais os indivíduos conformam seus valores, inclusive, os que os levam à opção da carreira criminosa e, por fim, função assumida pela coerção e pelo conflito no que tange a estabilidade da moral societária.

Introdução

O crime sempre constituiu-se enquanto fenômeno extremamente relevante em toda a sociedade e assim, inúmeras foram as ciências e teóricos que ocuparam-se de seu estudo. A sociologia constitui-se como um dos campos do saber onde o desvio permitiu a elaboração de teorias para a sua conceituação, evolução e conformação atual.
Nesse sentido, para a sociologia, o que define um ato como criminoso é a reação societária a ele e assim, a característica central do crime é externa tanto ao ator como a sua conduta, na medida em que o rompimento com as regras comunitárias não é algo fatídico imposto ao indivíduo. No momento em que se estabelece que atos desviantes e regras morais fazem parte do mundo social real que existe externamente aos membros da coletividade, o interacionismo simbólico compartilha a visão fenomenológica  da realidade constituída de forma externa ao indivíduo.
As modernas teorias funcionalistas, que influenciaram tanto do direito penal como a sociologia, colocam o crime como o resultante das contingências e decisões cotidianas informadas por tipificações do senso comum a que os cidadãos são submetidos diariamente. Assim, as taxas de criminalidade organizacionalmente produzidas não refletem nenhuma realidade objetiva, na medida em que apenas clarifica os processos de negociação pelos quais os membros sociais atribuem caráter moral a atos e atores.
Para a teoria do intercâmbio, conformidade e desvio são respostas comportamentais a avaliações individuais dos benefícios e custos envolvidos em atividades normativamente definidas. Nesse sentido, a ação é norteada pela recompensa que ela pode conceder a seu ator e não pela internalização de valores coletivos.
A partir da definição das três teorias do que se constitui o ato criminoso, será possível a análise do fenômeno propriamente dito, a qual deverá obedecer os seguintes fatores:
·         Implementação de regras e significados morais
·         Rituais punitivos como reforçadores da solidariedade
·         Imposição autoritária de valores
·         Elaboração de identidade e carreira criminosa
·         Coerção e conflito.

Implementação de regras e significados morais

Não há como falar na conformação da sociedade atual, a qual estabelece regras de conduta entre os indivíduos, sem antes elaborar algumas considerações acerca do contrato social, cujo grande expositor foi Hobbes.
Hobbes partia sua explicação para a necessidade de elaboração do contrato social do "estado de natureza", onde os homens não possuem nenhum tipo de limitação para o uso dos meios e da força para o alcance dos interesses particulares. Nesse estágio, trava-se uma luta sem limites pelo poder, já que todos os atores são igualmente racionais em suas ações.
A solução de Hobbes para essa guerra de todos contra todos é a emergência de um contrato social entre os indivíduos, os quais, pela ameaça da coerção, realizarão os comportamentos indispensáveis a manutenção da ordem coletiva. Para que isso fosse possível, o monopólio do uso da força legítima deveria se concentrar nas mãos de uma só pessoa, que ele denominou como Leviatã ou, modernamente, Estado, o que ocorreria através da delegação de parte da soberania individual para esse que se consubstanciaria enquanto soberano.
No momento em que Hobbes coloca a ameaça da coerção legítima aos indivíduos que agirem em desacordo com o postulado pelo Leviatã para a manutenção da ordem social, ele conforma-se enquanto um dos primeiros teóricos do sistema penal. Para ele, o criminoso é aquele que rompe o contrato social sendo por isso uma ameaça a continuidade da coletividade. Dessa forma, é necessário punir o infrator como exemplo aos demais de maneira que todos venham a seguir as regras e a lei.
Para efetivar esse ideal de coerção, Hobbes prevê a instituição do sistema de justiça criminal, o qual se materializaria no crime, no processo criminal, juiz e na punição final.
O crime encontra-se intimamente ligado a relação que o indivíduo estabelece com a sociedade, ou seja como o membro social se sujeita a disciplina necessária a manutenção da coletividade.  Nesse sentido, para Hobbes, o criminoso deveria ser julgado pelos seus semelhante, na medida em que apenas eles saberiam o quanto os interesses egoístas lesaram a manutenção do contrato social e punido da maneira mais exemplar possível, seja com o banimento para as galés ou a execução em praça pública.
Com isso, esperava-se que os demais membros sociais fossem acometidos de um temor tão violento que viesse a agir apenas como postula a lei, formulada a partir do contrato social realizado pelos indivíduos.

Rituais punitivos como reforçadores da solidariedade

O crime enquanto fenômeno natural da sociedade e os rituais de punição enquanto meio de reforçar os laços de solidariedade que mantém a coletividade coesa será abordado por importante sociólogo francês Emille Durkhein.
Essa construção teórica parte da presunção de existência de um contrato social anterior que definiria as regras constitucionais do jogo social no qual os indivíduos procederiam ao cálculo racional dos benefícios derivados da solidariedade entre os membros da coletividade.
Durkhein percebia a sociedade como algo decorrente da interação cotidiana entre os indivíduos, bem como suas crenças e ações e, por isso, conformava-se com características distintas da mera soma de seus componentes. A partir do momento em que os membros sociais se relacionam é possível a formação de uma consciência coletiva apta a determinar quais seriam as ações contrárias a moral preponderante.
A sociedade é, na visão de Durkhein, um fato social, visto que constitui-se enquanto algo externo e maior que os indivíduos que a compõem, o que a dota de um poder imperativo e coercitivo. Isso porque na hipóteses da ausência total de constrangimentos o indivíduo irá nortear suas ações de maneira egoísta, o que levará a desordem social.
Dessa forma, a sociedade é uma autoridade moral dotada de:
·         Solidariedade pré-contratual: permite a formação de redes de confiança que culminam no contrato social materializado pelas leis e pelo próprio Estado.
·         Consciência coletiva: é a obrigação moral que liga o indivíduo a sociedade. Isso ocorre através da conformidade de um sistema de valores onde as crenças e anseios egoístas são compartilhados em prol do coletivo.
·         Regras Morais: são o meio através do qual a coletividade expressa não apenas suas normas, como também seus mecanismos de controle. Com isso espera-se que nenhum indivíduo venha a transgredir os valores sociais. Os atores desviantes são os não socializados, ou seja, aqueles que não internalizaram a moral preponderante. Nesse sentido, apenas a absorção das regras permite a reunião do criminoso ao grupo social.
·         Representações coletivas;
Esses elementos sãos os meios utilizados pela ordem social para a conformação de um poder coercitivo. O crime, dentro dessa perspectiva, é algo disfuncional a integração na medida em que representa o desvio de comportamento de um indivíduo em relação ao coletivamente postulado. Por isso, os rituais de punição conformam-se como a dramatização das crenças coletivas que permite reforçar as crenças e a solidariedade social.
Para Durkhein a lei simbolizava a solidariedade social na medida em que ela positiva os valores que unem os indivíduos. O processamento do crime pelo sistema de justiça criminal, por sua vez, representa as operações do sistema de solidariedade necessários a continuidade da sociedade. Dessa forma, o desvio poderá assumir duas conotações diversas em virtude das características societárias na qual ele venha a ocorrer.
A primeira conotação que o crime poderia assumir, segundo Durkhein, era a de patologia e nesse sentido, ele se constituiria como negação da solidariedade social, razão pela qual deveria ser erradicado. Dessa forma, a ação criminosa é como um câncer que se não eliminado pode contaminar toda a sociedade. O próprio Durkhein irá colocar que essa visão é essencialmente limitada e, por isso, aplicável apenas as pequenas sociedades, onde os papéis exercidos por cada um são rigidamente fixados e assim, qualquer transgressão ameaçaria a continuidade do coletivo.
Entretanto, a modernidade colocou ao homem a possibilidade dele exercer diversos papéis dentre de um mesmo núcleo social. Essa complexidade estrutural leva a percepção de que o criminoso não é um corpo doente, mas um indivíduo que não internalizou completamente as normas dominantes e, por isso, realizou uma conduta desviante. Dessa forma, sua punição não deve ser a exclusão da sociedade e sim sua readaptação, já que ele é um membro da coletividade como qualquer outro. Para Durkhein, o que se pune modernamente não é o indivíduo, mas a violação que ele realizou aos sentimentos e valores instituídos no seio social.
Nesse sentido, o crime é uma conduta que nega o caráter coletivo dos sentimentos e por isso, quem deve punir o criminoso é a coletividade, já que apenas ela pode sentir a dor e os prejuízos da ação egoísta. Os rituais de punição agregam a consciência coletiva e elevam a solidariedade do grupo que reprime o transgressor. A pena não tem pretensões preventivas de coibir o desvio no seio social, mas apenas garante o respeito a lei e assim, a coesão social, já que caso contrário os atores iriam seguir apenas os seus anseios particulares.
Durkhein avança em sua obra "Regras do Método Sociológico" ao colocar o crime como indispensável a moral e ao direito.  Isso porque o acontecimento criminoso leva a coletividade a se reunir para punir o transgressor, reforçando os valores e crenças positivas vigentes.
Entretanto, é importante destacar que a evolução da sociedade coloca uma nova conformação de valores que refletem exatamente o que será considerado como crime em cada momento. Em certa medida, a mudança da tipificação criminológica tem relação direta com o poder criativo dos indivíduos em realizar novas condutas até então não previstas. Assim, deve existir uma certa flexibilidade na determinação dos delitos de maneira a estabelecer uma correspondência à realidade social.
Portanto, para Durkhein, modernamente, o crime é algo natural, não possuindo nenhuma ligação com a patologia, estando estruturalmente ligado as concepções sociais. Sua contraposição básica foi a formulação anômica de Merton.
Imposição autoritária de valores
Merton coloca que anomia se refere a ausência de regulamentação entre o imposto normativamente e o verificado na prática. Assim, há um corpo de leis que não se materializa na medida em que a coletividade não foi capaz de desenvolver laços de solidariedade suficientemente fortes que levem o indivíduo a distinguir o que é ou não transgressão.
Dessa forma, para que o desvio não ocorra naturalmente, faz-se necessário o estabelecimento de laços de solidariedade suficientemente fortes de tal maneira que o indivíduo seja conduzido ao caminho que se espera que ele realize e não ao crime, o qual significa a transgressão aos valores preponderantes.
A teoria de Merton será importante para explicar o senso comum de que a classe baixa tem maior propensão a delinqüir, o que leva o sistema prisional a se conformar como um lócus de reprodução da miséria. A anomia busca, conforme Paixão coloca, "descobrir como algumas estruturas sociais exercem uma pressão definida sobre certas pessoas da sociedade para que sigam uma conduta incomformista (desviante) em detrimento de uma conformista". Dessa forma, o ponto basilar da formulação teórica em análise é o fato das instituições sociais serem sustentadas por um sistema de valor que define as metas culturais de cada indivíduo.
Nesse sentido, segundo Paixão, a anomia decorre da "disjunção entre objetivos culturalmente prescritos e meios institucionalmente legítimos de realização das aspirações". As classes mais baixas são aquelas que submetidas simultaneamente a uma forte pressão de internalização dos valores culturais preponderantes e a limitação institucional aos meios que permitam a realização desses propósitos. Com a penetração da ideologia da igualdade nesse estrato social, a impossibilidade de alcança-la por meios legítimos coloca o crime como um artifício de sucesso na transposição de barreiras e ascensão social. Com isso, essas pessoas, que até então se situavam a margem do mercado, podem consumir bens e serviços desejados independente da licitude do dinheiro que elas empregam nessas transações.
Os estudos confirmam essas proposições ao demonstrar a concentração de renda e a persistência de delinqüentes nos bolsões de miséria, ou seja, em áreas territorialmente limitadas a margem dos grandes centros urbanos, onde a interação entre criminosos experientes e jovens iniciantes torna possível a transmissão de habilidades e valores criminógenos. Dessa forma, o ator poderá ser considerado criminoso anômico ou não dependendo da disponibilidade de meios legítimos ao alcance de seus objetivos materiais.
A grande limitação da teoria da anomia de Merton é que ela explica apenas um dos objetivos do crime: o sucesso material. Entretanto, é bem verdade que o criminoso pode possuir inúmeros outros propósitos que não se explica pelo conflito entre valores e meios legítimos a sua materialização.
Lemert coloca que com a introdução do pluralismo cultural, a relação entre estrutura e desvio passa a ser insuficiente para explicar a criminalidade, a qual é verificada, inclusive, em estratos sociais que possuem meios materiais para o alcance de seus objetivos. Além disso, os atores sociais podem definir sucesso como algo mais profundo que a simples acumulação de riqueza.
Portanto, a teoria da anomia passa a ser descartada como fator único de explicação da causalidade do crime, na medida em que não atenta para a influência que a diversidade cultural e de poder, bem como a implementação da lei e da ordem podem Ter sob a conformação da conduta criminosa.
Elaboração de identidades e carreiras não convencionais
Segundo Garfinkel, a ordem societária decorre do entendimento comum entre os membros coletivos acerca dos fatos sociais. Esses são aqueles que ocorrem rotineiramente na vida dos indivíduos e assim, passíveis de serem previstos por cada um deles. No momento em que os atores se deparam com uma ação não familiar, ou seja, que não tenha respaldo em seu background cultural, tem-se a ocorrência do crime.
Essa formulação teórica é o que se denomina micro-sociologia segundo a qual a  conduta dos atores é determinada pela interpretação que eles fazem de seu papel e não como resultante de uma interação orientada por um sistema de valores. Assim, a ação social resulta do processo de interpretar o comportamento dos outros e suas aspirações, sendo essa leitura a determinante da ação adotada por cada um.
Dessa forma, ela rejeita a idéia de que a sociedade é resultante da articulação dos indivíduos que a conformam através do estabelecimento de laços de solidariedade afetiva. Para a micro-sociologia, a ordem social não é resultante de uma força coletiva, mas de unidades autônomas que agem em relação a uma situação e não em conformidade com uma cultura comunitária.
A micro-sociologia ao colocar que a ordem social é produto de um interacionismo negociador constante parte da premissa que os atores sociais estão sempre barganhando para alcançar suas aspirações. No momento em que o curso natural de negociações é rompido, os indivíduos passam a ter de formular novas interações para aquela questão que até então era imprevisível.
Nesse sentido, a atividade criminosa conforma-se exatamente como aquela que provoca a quebra do curso normal das negociações, na medida em que representa um ato até então imprevisível pela leitura dos demais comportamentos, forçando a reação coletiva para o restabelecimento da ordem e das barganhas anteriormente vigentes. O ator social transgressor terá sua conduta interpretada pelos demais membros societários, o que poderá imputá-lo determinados rótulos e uma nova identidade, diversa da que ele anteriormente exercia.
Segundo a Teoria dos Rótulos, o delinqüente é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso. Assim, o criminoso é decorrente da imposição do senso comum coletivo, materializado na reação comunitária ao desvio por ele realizado.
Lemert passa, a partir dessa premissa básica da teoria dos rótulos, a distinguir duas formas de desvio:
·         Primário: são os comportamentos que, apesar de transgressores a ordem dada, não foram detectados publicamente e assim, o ator não foi rotulado como criminoso.
·         Secundário: é a conduta alvo de defesa, ataque ou adaptação pela ordem social. Nesse momento, o indivíduo é rotulado como criminoso na medida em que sua transgressão é publicamente conhecida e combatida.
Becker procura avançar na categorização de Lemert ao colocar uma terceira classe de criminosos:
·         Secreto: é aquele que apresenta comportamento vulneráveis em relação aos procedimentos comumente utilizados para a descoberta do desvio, entretanto, como as investigações ainda não apontam para a culpabilidade do ator, ele ainda não foi rotulado.
Após a categorização das classes de desvios, a teoria dos rótulos avança para a descrição dos processos através dos quais os indivíduos se tornam criminosos. Nesse sentido, a  teoria coloca que a conformação do status de transgressor observa os seguintes estágios:
1-       Motivação do ator social para a execução de um ato contrário a moral predominante na sociedade.
2-       Desenvolvimento  de interesses desviantes em detrimento dos conformistas com a ordem e procedimentos vigentes.
3-       Transformação da identidade do ator social, na medida em que ele modifica sua natureza essencial de valores e os anseios que pretende materializar. Nesse momento, através da ação do aparato de justiça criminal, o transgressor passa a ser excluído do grupo social a que ele anteriormente pertencia.
4-       O último estágio é decorrência do anterior, já que no momento em que o indivíduo é excluído do grupo a que anteriormente pertencia, ele é forçado a participar de uma subcultura desviante e organizada. A partir da interação com os membros mais experientes desse novo grupo, o criminoso é socializado em seus novos valores, principalmente, no que Paixão denominou de "mecanismos de mercado marginal e estratégias de evitar apreensão".
Collins coloca que a partir do desenvolvimento de atividades organizadas em carreiras, o criminoso passa a Ter a possibilidade de mobilidade social dentro da estratificação que o crime coloca, o que nem sempre corresponde a divisão de classes preponderante na sociedade.
Isso ocorre porque as carreiras criminosas são estratificadas conforme a capacidade de mobilizar recursos, alianças com lideranças políticas e organizações de controle. Isso porque são exatamente esses instrumentos que garantem a impunidade do ator desviante e o sucesso do fenômeno transgressor.
Outro importante fator que determina a estratificação das classes de criminosos é o fato da estrutura do mercado de crime impor barreiras a entrada de novos criminosos no sistema. Algumas áreas criminosas operam sob o regime de monopólio dadas as exigências de profissionalização dos atores e, em alguns casos, as próprias limitações territoriais.
Portanto, o indivíduo transgressor adere cada vez mais a sua classe inicial de maneira que sua ocupação desviante seja rotulada de maneira extrema de forma que torne difícil a exclusão do ator social transgressor a esse novo grupo que ele acaba de integrar.
Coerção e conflito
A partir do momento em que o crime é colocado como um desvio social, faz-se necessário a instituição de determinados mecanismos de controle, aptos a induzir o restante da sociedade a agir conforme a lei, regulamentos e moral preponderante. Como o criminoso continua pertencendo a vida coletiva, faz-se necessário a identificação de sua conduta como desviante além das relações que levaram a sua realização, de tal forma que as causas do desvio possam ser tratadas e assim, seja possível a restauração da identidade moral do indivíduo de maneira que ele possa retornar a sociedade pacificamente.
Essas proposições encontram-se materializadas no que se denomina chamar sistema de justiça criminal, a qual se movimenta conforme o fluxo e a capacidade de negociação do criminoso em suas diversas instâncias. É composto pelas seguintes instituições:
·         Organizações Policiais;
·         Ministério Público;
·         Poder Judiciário;
·         Sistema Penitenciário.
 A primeira instituição a materializar os conceitos de controle social a partir da coerção do delito é a organização policial, a qual se constitui enquanto instrumento de garantia da implementação das normas obrigatórias da sociedade. Assim, a polícia deve se encarregar de estimular a obediência as leis e aos costumes, o que ela realiza através do uso da força de maneira legítima cujos procedimento encontram-se estabelecidos em uma estrutura extremamente descontínua que permite a instalação do paradoxo de desrespeito a regulamentos.
O paradoxo de fazer cumprir a lei através do desrespeito aos regulamentos institucionais reside no fato do principal poder da organização policial estar em identificar quem apresentou a ação desviante. Nesse sentido, a polícia configura-se como a primeira instituição social apta a rotular o indivíduo como criminoso, fazendo-o obedecer as regras morais através da imposição de uma relação de dominação que é factível pelo uso da força.
Nesse sentido, segundo Paixão, a polícia pode ser definida como uma organização burocrática que maximiza a aplicação da lei através da utilização de recursos profissionais. Entretanto, com o intuito de efetivar sua missão institucional, os policiais nem sempre materializam o disposto em seu regulamento.
Assim, estabelece-se uma negociação constante entre os atores policiais e os criminosos no sentido de controle do crime. O fluxograma da ação de ambos atores pode ser vislumbrado através das seguintes etapas percorridas:
1-       O oficial recebe como missão desarticular a configuração social de um determinado crime, entretanto, para efetivar sua função é necessário que o delito ocorra.
2-       Através das informações obtidas por recursos marginais aos institucionalmente estabelecidos, os policiais "fazem o crime acontecer", tornando possível a autuação dos envolvidos na transgressão da determinação legal.
3-       O criminoso será autuado e sua conduta levada ao conhecimento dos superiores hierárquicos do policial dentro da corporação. Nesse momento instala-se uma dualidade: a autuação é decorrente de informações ilegítimas que chegam a conhecimento do comandante através do relato do praça, entretanto, para que novos crimes seja coibidos, faz-se necessário a utilização contínua desse saber "marginal".
Portanto, como o fim maior da polícia é a ostensividade a criminalidade, o comandante passa a "confiar" na veracidade de tudo o que seu comandado relata, conferindo maior poder ao praça para o abandono do regulamento positivo e adoção de condutas informalmente institucionalizadas, aptas a conferir maior efetividade aos propósitos da corporação.
Assim, conforme colocado por Paixão, "embora o significado da lei e da ordem seja determinado nos encontros cotidianos entre policiais e cidadãos, o modelo quase-militar evoca uma organização que se orienta pela aplicação da lei impessoal, através de procedimentos governados por regras e controlados por autoridades que respondem pela organização diante do controle externo".
Portanto, para Paixão, as "organizações policiais tendem a escapar a controles internos e externos na medida em que o poder policial tende a basear-se no segredo, na fabricação de informações legítimas para o público externo, ao mesmo tempo em que sua face pública é a de uma organização em guerra contra o crime, garantia da segurança e da liberdade dos cidadãos."
A formatação burocrática de combate ao crime através da coerção decorre, historicamente, da necessidade de implementação da lei na sociedade, principalmente, nas classes marginalizadas, de maneira a se alcançar a ordem social. O problema instaura-se na medida em que a lei decorre dos anseios das classes detentoras do poder econômico e político em um dado momento. Com isso, o policiamento passa a ser voltado a proteção dos interesses desses indivíduos o que marginaliza ainda mais os estratos sociais mais baixos, que nem sempre concentra a totalidade de criminosos.
Essa marginalização é determinada por indicadores historicamente construídos de criminalidade. Assim, a polícia volta a sua ação a jovens, homens, desempregados, favelados e reincidentes, já que ao longo do tempo eles forma os maiores responsáveis pela delinqüência. Com isso, o policial espera dotar sua ação de economicidade e maior efetividade, o que, teoricamente, deveria representar um grande avanço em termos da eficiência da ação policial.
Entretanto, esses indicadores sociais tornam-se um problema na medida em que os atores modificam a realidade e suas coalizões no propósito de não se configurarem enquanto alvo da ação policial. Nesse momento, os estereótipos criados para orientar a efetividade do policiamento, tornam-se mecanismos de impunidade e meio de permitir um aumento da delinqüência.
Portanto, a implementação da lei e da segurança é mediada pelos interpretações que os policias realizam do cenário de sua intervenção. Entretanto, como essa leitura é socializada dentro e fora das organizações policiais, muitos atores sociais passam a orientar seu comportamento de maneira a não encaixar-se nos rótulos colocados, o que pode levar a ineficiência da ação policial na hipótese dos canais marginais de informação não se encontrarem solidamente estruturados.
Conclusão
O fenômeno do crime sempre foi um dos grandes problemas das sociedades ao longo do tempo. Em um primeiro momento, a delinqüência era considerada como uma ameaça a continuidade da comunidade sendo que essa visão evolui até o ponto do desvio ser colocado como um fator de integração social na medida em que é o coletivo que pune a ação desviante e não o indivíduo.
A punição é possível a partir da possibilidade de utilização legítima da força o que ocorre com a delegação de parte da autonomia individual em favor da soberania estatal consubstanciada no contrato social. Nesse momento, para que a coerção seja efetivada é necessário a estruturação de um sistema de justiça criminal apto a processar os criminosos e a puni-los de maneira exemplar a fim de que os instintos de reincidência e aumento dos atores desviantes sejam coibidos.
No momento em que o sistema de justiça criminal começa a se movimentar principalmente frente aos rotulados fortemente como criminosos tem-se a estratificação da delinqüência a qual nem sempre corresponde a divisão econômica das classes sociais.
O senso comum de que a miséria gera criminalidade não mais se efetiva em nos tempos modernos na medida em que os criminosos não mais anseiam a exclusiva satisfação do consumo. Os transgressores passam a ter propósitos múltiplos com sua ação desviante e assim, o crime se dissemina em toda a estrutura social, principalmente, entre os detentores do poder político, os quais irão procurar elaborar determinadas leis que garantam a sua não incorporação pelo sistema de justiça criminal.
Assim, a estratificação social dos criminosos em classe é decorrente do fato dos transgressores serem tanto mais bem sucedidos quanto maior a sua capacidade de desenvolvimento de técnicas que os permitam a não atuação pela polícia. Dessa forma, configura-se também o monopólio de algumas atividades criminosas onde a limitação profissional e territorial impede a entrada de novos infratores.
Dessa forma tem-se a verdadeira configuração de carreiras criminosas onde a contínua especialização e a capacidade de não apreensão pelo sistema de justiça criminal o tornam um profissional extremamente bem sucedido.
Nesse contexto, o policial detém sua ação apenas nas classes mais baixas da estrutura criminosa na medida em que apenas nesses estratos ele consegue institucionalizar um canal de informação em virtude da própria inexperiência dos transgressores. Além disso, apenas nessas camadas será possível fazer o crime ocorrer dentre os indivíduos continuamente rotulados como delinqüentes: os jovens, homens, desempregados, favelados e reincidentes. Com isso, garante-se o não alcance dos P. H.D. em crime pelo sistema de justiça criminal.
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